O Papel do Sistema de Crenças na Constituição do Professor de
Biologia no Ensino Médio: Auxílio ou Empecilho?

Valdecí dos Santos
Universidade do Estado da Bahia
Campus II – Alagoinhas

Introdução

A dissertação de mestrado – O papel do sistema de crenças na constituição do professor de Biologia no ensino médio: auxílio ou empecilho? – versa sobre o impacto que os sistemas de crenças apresentam na concepção científica do/a professor/a de Biologia do Ensino Médio. Duas questões fundamentais são discutidas na dissertação: até que ponto o sistema de crenças dos professores traria em seu bojo uma resistência ao saber científico, e como essa resistência interferiria na maneira costumeira de o professor transmitir o conteúdo científico. O estudo de caso, parte de entrevistas individuais com seis professores/as de Biologia.

São as seguintes as principais questões discutidas: Como o/a professor/a de Biologia lida com seus conhecimentos prévios (sistema de crenças) referentes ao conhecimento científico da área de Biologia? Como o/a professor/a de Biologia lida com os conhecimentos prévios (sistema de crenças) dos alunos, no contexto da sala de aula? Como o/a professor/a de Biologia percebe os conhecimentos prévios dos alunos referentes aos conteúdos de Biologia? Como o/a professor/a de Biologia lida com os seus conhecimentos prévios no aprendizado da Ciência? O que o/a professor/a de Biologia conhece sobre a Etnobiologia?

A fundamentação teórica reside na Etnometodologia e nos contatos multirreferenciais com as filosofias bachelardiana e moriniana, com a Psicanálise e com a Psicologia Social através de sistemas de crenças.

As Descobertas

O/A professor/a de Biologia, ao distinguir crença de conhecimento, ressalta que a crença tem conotação de projeção do futuro, adesão incondicional a algo, imutabilidade na forma de ver alguma coisa. O conhecimento é concebido como movimento e incerteza. Contudo, o/a professor/a deixa transparecer que, possivelmente, sua visão de conhecimento está referendada na produção da comunidade científica. É algo vinculado à sua formação científica nos cursos de Licenciatura e Bacharelado em Biologia, que tem como paradigma a Ciência ocidental.

Respondendo à questão – Como o/a professor/a de Biologia percebe os conhecimentos prévios (sistema de crenças) dos alunos referentes aos conteúdos de Biologia? – relacionada a uma das situações cruciais enfrentadas pelo/a professor/a de Biologia, na dificuldade de eles/elas conceberem os obstáculos epistemológicos do aluno ao confrontar-se com conteúdos científicos contrários ao seu sistema de crenças, são evidenciados dois aspectos: o primeiro está relacionado com a visão subjacente de obstáculo epistemológico que o/a professor/a de Biologia tem quanto aos conteúdos científicos centrais no ensino de Biologia – Origem da vida e Evolução. O segundo aspecto diz da centralidade do criacionismo no sistema de crenças dos indivíduos.

Isto remete também a dois aspectos igualmente importantes sobre da subjetividade que permeia o ensino de Biologia. O primeiro aspecto está relacionado à tríade conhecimento/crença/verdade, evidenciada através do conteúdo Origem da vida, onde é marcante a cisão do sujeito. E o segundo aspecto diz da dificuldade de instauração do discurso científico diante da centralidade de crenças primitivas de conteúdo religioso no sistema de crenças individuais.

Segundo os/as entrevistados/as, Origem da Vida e Evolução são os conteúdos da Biologia que entram em conflito com o sistema de crenças dos alunos. Uma vez que os mesmos interferem na visão de mundo do homem – onde o antropocentrismo nega a Evolução dos seres vivos, retira-o de sua condição de Ser sobrenatural criado imagem e semelhança da Força Criadora chamada Deus. Para o/a professor/a de Biologia, o sistema de crenças representa um obstáculo epistemológico significativo para a instauração do conhecimento científico.

Por que a concepção criacionista de Deus é escolhida como um lugar privilegiado no ensino de Biologia, quando são abordados os conteúdos científicos – Origem da vida e Evolução? Como possibilidades de leituras, destaco os obstáculos da Ciência para definir o objeto de estudo da Biologia – a vida e o que o circuito transferencial explicita através das colocações trazidas pela Psicanálise.

A ciência em sua evolutiva, ao buscar responder a pergunta aparentemente simples: “o que é vida?” deparou/depara com verdades transitórias. A vida continua tema obscuro para a própria ciência.

Se, de um lado, a própria Ciência enfrenta obstáculos em suas discussões sobre a vida, ao longo de sua história, por outro lado, o/a professor/a de Biologia também. Como porta-voz dessa Ciência, ele/a encontra dificuldade para romper obstáculos oriundos da concepção criacionista da vida – aquela onde Deus aparece criando a vida.

Na segunda possibilidade de leitura através da Psicanálise, possivelmente Deus faça parte do circuito transferencial dos sujeitos, o que contribui para que o mesmo, de acordo com a vivencia dos sujeitos envolvidos no contexto escolar, adquira uma existência real. Isso sinaliza que, para que o sujeito instaure um lugar para os conteúdos científicos – Origem da vida e/ou evolução, é preciso que o conteúdo Deus seja tecido em uma ordem diferente daquela constituída originariamente no circuito familiar, no bojo dos sistemas de crenças coletivos e (re)significado nos sistemas de crenças individuais. Portanto, a concepção de Deus constitui-se em um saber elaborado pelo sujeito, e denota também, ao mesmo tempo, certos aspectos referentes à cisão trazida no interior desse sujeito.

No aprofundamento da percepção do/a professor/a de Biologia sobre sistemas de crenças, a segunda questão da investigação – Como o/a professor/a de Biologia lida com os conhecimentos prévios (sistema de crenças) dos alunos no contexto da sala de aula? – evidenciou três perspectivas sob as quais os sujeitos lidam com o sistema de crenças dos alunos. Primeira perspectiva: estando aberto para a escuta sensível das questões do aluno e mobilizando condições para a instauração do conflito sistema de crenças x conhecimento científico. Segunda perspectiva: escutando as questões do aluno e não mobilizando condições para a ruptura entre sistema de crenças e conhecimento científico – não reconhecendo a resistência ao conhecimento científico como obstáculo epistemológico. E a terceira perspectiva: reconhecendo sistemas de crenças como obstáculo epistemológico; entretanto, disponibilizando condições para o aluno optar por romper ou não romper com seu sistema de crenças.

Essas perspectivas sob as quais os sujeitos lidam com a resistência dos alunos trazem à tona uma questão que permeia não apenas o aluno, mas também o sujeito professor. Afinal, por que os sujeitos resistem ao conhecimento? Provavelmente, essa resistência encontra-se relacionada à ruptura de visões de mundo requerida pela Cultura científica e pela cisão dos sujeitos.

Pontuando o sujeito professor/a de Biologia, duas das questões da investigação buscaram conhecer como ele/a lida com a objetividade científica: Como o/a professor/a de Biologia lida com seus conhecimentos prévios (sistemas de crenças) referentes ao conhecimento científico da área de Biologia? Como o/a professor/a de Biologia lida com os seus conhecimentos prévios no aprendizado da ciência? Essas questões que expressaram a oscilação do/a próprio/a professor/a diante de suas crenças primitivas e do conhecimento científico do qual é porta-voz.

Essa oscilação denota a cisão que demarca o semblante profissional do/a professor/a de Biologia referendado pela objetividade científica e subjetividade vinculada ao seu sistema de crenças.

Discursando a partir do lugar de porta-voz do discurso da ciência, o/a professor/a de Biologia, possivelmente, tende a buscar mecanismos que mascarem sua cisão ante a subjetividade constitutiva do seu sistema de crenças, uma vez que o discurso da Ciência está pautado num paradigma que refuta a subjetividade. E a Ciência referendada e fundamentada na experimentação e na objetividade dos fatos.

Neste estudo, todos os sujeitos, mesmo tendo como referência primeira a associação de crenças à religião, evidenciaram significativa preocupação por terem seu semblante profissional maculado pela associação de crença religiosa à sua postura profissional. São enfáticos quanto à necessidade de uma postura profissional que não atrele seus sistemas de crenças originários ao ensino científico.

Contudo, nas falas é evidente que os semblantes definidos nos discursos sociais não dão conta do “real” dos sujeitos. Especialmente por causa da cisão do sujeito diante do seu real e do real “instituído” para seu semblante.

Ao buscar elaborar um discurso alternativo em que ciência e sistemas de crenças tenham pontos de contato - para poder lidar com sua subjetividade diante do Outro que interage no laço social -, o sujeito na condição de professor/a de Biologia, possivelmente, tende a salvaguardar seu semblante profissional validado no discurso social.

Partindo-se da premissa de que os semblantes não dizem sobre o eu dos sujeitos, é possível que a localização da suposta incoerência entre o semblante profissional e a fala pontual do/a professor/a de Biologia, quanto às crenças primitivas de conteúdo religioso, esteja relacionada à dificuldade de construção de um pensamento sustentado.

Talvez a dificuldade que os sujeitos têm para manter um pensamento sustentado esteja relacionada com a segurança que os mesmos buscam nas crenças primitivas, através de um Deus, onipotente e onisciente, que responde todas as questões emergidas nas interações cotidianas do contexto pessoal-grupal-social-cultural-econômico-político. Ou seja, talvez por ser o real algo terrível para os sujeitos, eles busquem os ideais simbolizados em semblantes. Os sujeitos criam alternativas para manter sua cisão de maneira “harmoniosa”.

Enfim, o semblante constituído para o/a professor/a de Biologia, como porta-voz do discurso da Ciência, não propicia a ruptura epistemológica de conteúdos em seu sistema de crenças, que negam, exatamente, o discurso pelo qual o/a mesmo/a é autorizado/a. Esse fato indica a dimensão inconsciente dos sujeitos e deve ser levado em consideração no ensino de Biologia, especialmente porque seu núcleo temático – Origem da vida – está relacionado intimamente com a dimensão subjetiva da constituição dos sistemas de crenças dos sujeitos.

No que tange à Etnobiologia, ficou evidenciado que a mesma é uma ciência desconhecida entre os/as professores/as de Biologia.

Conclusão

Enfim, as questões discutidas neste estudo mostram a complexidade dos sistemas de crenças na constituição dos sujeitos, especialmente dos sujeitos que lidam com o conhecimento científico, no caso, o/a professor/a de Biologia. Afinal, é auxílio ou empecilho o papel do sistema de crenças na constituição do/a professor/a de Biologia do Ensino Médio?

Auxílio ou empecilho? Que opção corresponde à verdade? Considerando que a verdade é a procura, remeto o leitor às atuais quase-verdades desveladas, para uma nova procura através da instauração da escuta psicanalítica de sujeitos envolvidos no ensino de Biologia. Toda Ciência busca a verdade. Mas, segundo Melanie Klein, a Psicanálise “é única por acreditar que a busca da verdade é, em si, um processo terapêutico” (Apud Rezende, 1999, p. 7).

Referências Bibliográficas

REZENDE, Antonio Muniz. A questão da verdade na investigação psicanalítica . Campinas: Papirus, 1999. 247 p.

Defesa em 10 de fevereiro de 2003, na Universidade de São Paulo. Orientadora: Professora-Doutora Leny Magalhães Mrech.